“Se for pensar realmente, toda forma de trabalho infantil é uma pior forma”, diz Katerina Volcov, secretária-executiva do FNPETI

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10/08/2022|

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As piores formas de trabalho infantil são as atividades que mais oferecem riscos à saúde, ao desenvolvimento e à moral das crianças e dos adolescentes, determinadas na Lista TIP – Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil.

Proposta pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), na Convenção 182, as piores formas incluem escravidão, venda e tráfico de crianças, exploração sexual, realização de atividades ilícitas, entre outras.

“Se for pensar realmente, toda forma de trabalho infantil é uma pior forma”, diz Katerina Volcov, secretária-executiva do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI), em entrevista ao Criança Livre de Trabalho Infantil.

Confira trechos da conversa:

Quais são as principais piores formas de trabalho infantil?

Katerina Volcov: São consideradas formas como a exploração sexual e o uso de crianças em conflitos armados. No Brasil, a gente pode pensar as questões relativas ao fogo cruzado que acontece nos morros e nas periferias das grandes cidades.

Depois a gente tem os trabalhos nas lavouras que envolvem o uso de agrotóxicos e altas temperaturas, as intempéries climáticas e o uso de objetos perfurantes.

A lista TIP é uma categorização que facilita o entendimento das piores formas de trabalho infantil, mas se for pensar realmente, toda forma de trabalho infantil é uma pior forma. Uma criança no semáforo está em situação de trabalho infantil e ela está sob temperatura, sob sol, sob calor, tem a possibilidade de ser atropelada, às vezes ocorre a gestão de um adulto, que pode ter envolvimento de abuso e exploração sexual, entre outras questões. Então também é uma pior forma de trabalho infantil, diante dessas condições.

Algumas geram mais risco à vida da criança, além dos aspectos físicos, psicológicos e emocionais.

Uma criança no lixão também está sob uma das piores formas de trabalho infantil, porque não sabemos o que ela vai encontrar dentro de um saco de lixo, se tem algum objeto cortante e se há alguma substância nociva.

Crédito: Tiago Queiroz

Outro exemplo é uma criança que está no Morro do Alemão, sendo um dos trabalhadores da comercialização de substâncias ilícitas e está empunhando um fuzil. Eu ouvi um relato de um caso que tem acontecido em alguns morros: Quando a polícia chega, colocam-se as crianças na entrada da comunidade como escudo. E aí? Essa situação está entre as piores formas, mas a caracterização da atividade como trabalho infantil vai depender de quem vê.

O fato é que a gente percebe que muitas das vezes em que se tem trabalho infantil, as pessoas não sabem identificar como trabalho infantil.

Quais situações você destacaria no Brasil?

Katerina Volcov: A comercialização de substância ilícitas é uma delas. Eu uso essa terminologia em específico, porque penso que a gente precisa diferenciar o que é o tráfico de drogas e o que é o trabalho infantil, até para desestigmatizar os adolescentes explorados nessa forma de trabalho, dentro da cadeia de produção que envolve a comercialização de substâncias ilícitas.

Precisamos refletir sobre o uso da terminologia “tráfico de drogas” para os adolescentes. Uma coisa é transportar centenas de quilos de cocaína  em um avião ou em um helicóptero. Outra coisa é o adolescente tentar sobreviver, passando a madrugada trabalhando. A gente precisa usar uma terminologia distinta. Da mesma forma que a gente não usa o termo menor, a gente não deveria usar tráfico de drogas.

Hoje, no mercado de drogas ilícitas, uma parte da classe média nem vai mais na biqueira. Ela pega via delivery, recebe um “cardápio” por WhatsApp e chega um motoboy, na casa da pessoa, porque ela não quer se arriscar. Eu fiz uma pesquisa com mulheres jovens da classe média, pensando sobre drogas lícitas e ilícitas, e elas falavam: “Parei de beber na pandemia, mas estou fumando maconha. Acho arriscado ir até a biqueira. Então eu escolho por WhatsApp e faço um PIX ou pago com a maquininha de cartão, que o cara traz.” São novas tendências, a partir da pesquisa que realizei em São Paulo.

Se pensamos no adolescente que vende a droga para esses consumidores, o adolescente não é o Pablo Escobar. A gente pode pensar no documentário Falcão – Meninos do Tráfico, do MV Bill. É muito triste, porque os meninos têm uma jornada exaustiva de trabalho e para darem conta dessa jornada exaustiva, eles também acabam muitas vezes fazendo uso.

Além disso, a exploração sexual também é uma das piores formas. O trabalho nas lavouras, o trabalho em cadeias produtivas agrícolas que usam agrotóxicos. Os adolescentes estão sujeitos a intempéries climáticas, manuseio de objetos pontiagudos e cortantes, como é o caso do tabaco, que é problemático.

O tabaco solta nicotina e estudos mostram os riscos à saúde, inclusive emocionais. Os trabalhadores da cadeia produtiva enfrentam o problema da doença verde, ficam deprimidos e têm um alto índice de suicídio.

(A Doença da folha verde do tabaco, ou GTS-Green Tobacco Sickness, é um tipo de intoxicação por nicotina causada pela absorção dermal desse alcaloide durante a colheita de tabaco molhado por orvalho ou por chuva). Fonte: Sinditabaco).

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Há ainda o trabalho infantil doméstico, no qual a grande maioria são meninas e elas também estão sujeitas à violência física, maus tratos, condições degradantes, no sentido de a infância estar imensamente desprotegida. O trabalho infantil doméstico é invisibilizado, pois é de difícil identificação, mas é um trabalho infantil muito comum, principalmente nas regiões Sul e Sudeste.

As meninas da região Nordeste acabam indo para cidades do Sul do país para terem condições de vida melhor, mas essa infância deveria ser protegida pelo Estado, porque o que acontece é que entram as questões de pobreza e da herança escravocrata.

Quais são as estratégias para enfrentarmos às piores formas de trabalho infantil no Brasil?

Katerina Volcov: Além de levar informação à população para que o trabalho infantil não se naturalize, é preciso promover mais políticas de proteção social e a integração das políticas voltadas para infância e adolescência. Precisamos de um sistema que congregue os números de trabalho infantil. Não existe isso nos documentos das políticas, porque as políticas não conversam.

A gente tem, por exemplo, o trabalho infantil dentro de um questionário do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), mas os profissionais da educação e o Conselho Tutelar não preenchem o formulário do Sinan. A categoria do trabalho infantil deveria estar inserida em todos os formulários de todas as áreas. Esse é um ponto, porque teríamos dados mais fidedignos.

Além disso, a gente precisa de capacitação e formação de todos os técnicos das áreas que conversam com infância e adolescência, para saberem identificar o que é trabalho infantil. Há mais de 5600 municípios no Brasil e a maioria são pequenos. Os técnicos, os profissionais das secretarias da assistência, da educação e da saúde precisam ter conhecimento sobre o que é trabalho infantil para que possam colocar a criança e a família em uma situação de cuidado. Quem cuida daquele que cuida? A gente precisa ter essa dimensão de entorno e de comunidade.

Sempre mencionamos educação, saúde e assistência, mas precisamos também das políticas  de  habitação, de geração de renda e de cultura, porque preciso ter uma casa para aquela família, preciso ter políticas integradas voltadas para infância e adolescência com foco em proteção social.

Crédito: Tiago Queiroz

Em um momento de pobreza, de crescimento da insegurança alimentar e fome no país, a gente precisa de programas de transferência de renda voltadas para crianças e adolescentes. Um benefício voltado para a criança e para o adolescente, por ser criança e por ser adolescente.

Concomitante a isso, também é necessário ter políticas de combate à desigualdade social e ao racismo estrutural. Pois são as causas subjacentes ao trabalho infantil – a desigualdade social e o racismo estrutural – porque a maioria das crianças e adolescentes envolvidos no trabalho infantil são negros.

Como a sociedade civil pode se envolver no enfrentamento ao trabalho infantil?

Katerina Volcov: Em termos do que cada pessoa pode fazer em seu dia a dia, é necessário fazer a denúncia qualificada. Como fazer uma denúncia qualificada? A gente tem o Disque 100 e a inspeção do trabalho. Devemos informar o atendente ou preencher o documento com o maior número de informações sobre aquela criança que você viu em situação de trabalho infantil: que horas, como a criança estava vestida, se deu para perguntar nome, em qual circunstância, se tinham adultos, se era mais de uma criança… o maior número de informações possível para que os órgãos competentes possam fazer os devidos encaminhamentos, seja o Conselho Tutelar, a assistência social ou a inspeção do trabalho.

De acordo com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), da Organização das Nações Unidas (ONU), a gente tem até 2025 para erradicar o trabalho infantil no mundo. Penso que no contexto brasileiro, isso é difícil de ser alcançado. Os números possivelmente são maiores pela subnotificação. Se em 2019 havia cerca de 1,8 milhão de  crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil, com a miséria e pós pandemia, o número é muito maior.

Uma pesquisa que usou dados agregados pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) chegou à conclusão que o número de crianças vítimas de trabalho infantil no Brasil pode ser até sete vezes maior do que o estimado em estatísticas oficias.

O estudo foi realizado pelo brasileiro Guilherme Lichand, da Universidade de Zurique (Suíça), e Sharon Wolf, da Universidade da Pensilvânia (EUA). Para saber mais, clique neste link. 

 

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