Trabalho infantil doméstico afeta a vida e desenvolvimento de crianças e adolescentes negras

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16/07/2021|

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Por Diel Santos

O trabalho infantil é uma dura realidade que afeta milhares de crianças e adolescentes em todo o Brasil. Os dados mais recentes da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNADC) de 2019 apontam que naquele ano havia 1,8 milhão pessoas de cinco a 17 anos em situação de trabalho infantil. O levantamento também mostrou que 66,1% dessa população é negra.

Quando realizado em residências em geral, de acordo com dados de 2016 do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI), o tipo de atividade passa a ser doméstica e realizada por meninas em 94% dos casos, sendo 73,4% negras.

“É preciso olhar para essa realidade compreendendo que o trabalho infantil doméstico viola os direitos das meninas, impede que continuem se desenvolvendo e oferece vários riscos. Precisamos nos preocupar também com o impacto disso na vida das meninas negras”, diz Viviana Santiago, professora e consultora de relações étnico-raciais.

No Brasil, é muito comum encontrar meninas muito jovens trabalhando na casa de uma madrinha, de algum parente, de vizinhos e conhecidos da família da criança. O trabalho infantil doméstico muitas vezes é inviabilizado por ser realizado dentro de uma residência, em caráter privado, quase sempre longe de qualquer tipo de fiscalização. 

“Esse trabalho ocorre toda a vez que uma criança ou adolescente é responsável pelas atividades da casa. Elas cozinham, lavam, secam e cuidam de crianças menores do que elas. Desde muito cedo são cobradas para realizarem tarefas como se já tivessem maturidade, idade e desenvolvimento para isso”, argumenta Elaine Amazonas, gerente da Plan International Brasil na Bahia. 

Diferente de outras formas do trabalho infantil, os afazeres domésticos não acabam, já que sempre há algo para limpar ou alguém para cuidar. Sem contar as situações de longas e pesadas jornadas de trabalho, há inúmeros riscos físicos por causa do uso de fogão, facas e produtos químicos, entre outros itens perigosos para crianças.

Trabalho infantil doméstico no Brasil

94,2% de crianças e adolescentes nessa situação são meninas

73,4% são negras

83% realizam jornada dupla ou tripla porque estudam e ainda trabalham também em suas próprias casas.

Ocorre em 3 situações: na própria casa da criança; na casa de terceiros de maneira remuneração ou na casa de terceiros sem remuneração.

Fonte: Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil

“Melhor estar trabalhando do que roubando”

A naturalização do trabalho infantil doméstico tem colaborado para a manutenção histórica desse cenário e dificultado o enfrentamento do problema. Há ainda três variáveis que cruzam essa realidade: as questões de gênero, cor e classe.

“As tarefas domésticas quase sempre são atribuídas como única possibilidade para as meninas. A ideia do ‘cuidar’ é colocada como coisa de menina. Desde cedo elas lidam com a responsabilização de cuidar do lar e com a visão de que isso é natural, já que com a avó e a mãe delas também foi assim”, diz Elaine.

Crédito: Tiago Queiroz

A situação de insegurança social é um dos fatores que ampliam essa realidade do trabalho infantil doméstico. Nas famílias negras e de baixa renda, a atividade realizada por essas meninas serve como auxílio para complementar a renda da casa.

“Ao se pensar a questão racial, desde o pós-abolição, as mulheres negras continuaram na condição de trabalhadoras domésticas e são a maioria até hoje. Quando a sociedade vê uma menina negra trabalhando numa casa, com ou sem remuneração, age como se isso fosse normal, como sendo esse o lugar que ela deve ocupar”, comenta Viviana.

É importante lembrar: ajudar com as tarefas da casa não configura trabalho infantil, mas quando a menina passa a ser a responsável por diversas atividades e pelo cuidado de outras crianças essa relação passa a ser abusiva.

Desigualdade de gênero na divisão das tarefas domésticas

A pesquisa “Por Ser Menina”, da Plan Internacional, ouviu 1.771 meninas das cincos regiões do Brasil para analisar o contexto de violações de direitos em que elas vivem.

Distribuição de tarefas

Meninas

81,4% arrumam a própria cama

76,8% lavam louça

65,6% limpam a casa

34% cuidam de outras crianças 

Meninos

11,6% arrumam a própria cama

12,5% lavam a louça

11,4% limpam a casa

10% cuidam de outras crianças

Fonte: Plan Internacional

Prejuízos para a educação

A entrada precoce no contexto do trabalho tem forte influência na exclusão escolar a qual essas meninas são submetidas e na qualidade do aprendizado quando conseguem frequentar a escola. A sobrecarga de tarefas domésticas é um fator que aumenta as chances de abandonarem a escola. 

A pesquisa Pnad Contínua Educação do IBGE, divulgada em 2020, levantou os principais motivos para o abandono entre as meninas: a gravidez foi o motivo principal para 28% e os afazeres domésticos para 11% delas.

Crédito: Tiago Queiroz

“O trabalho ocupa o espaço da ludicidade e educação na infância. O tempo de aprender, brincar, imaginar e sonhar é interrompido pela necessidade de trabalhar. A escola deveria ser um local onde essas meninas se sintam pertencentes, mas o que há é um processo de desumanização e precarização da infância negra”, comenta Elaine Amazonas, gerente da Plan International Brasil na Bahia.

Ainda segundo a Pnad, em outubro do ano passado 3,8% das crianças e adolescentes do Brasil entre seis e 17 anos (1,38 milhão de pessoas) deixaram de estudar presencial ou remotamente, acima da média nacional de 2% em 2019. 

Consequências do trabalho infantil doméstico

Na saúde física: quanto mais precoce é a entrada no contexto do trabalho, mais exposta fica a doenças ocupacionais

Na escola: desempenho escolar prejudicado já que as meninas ficam mais cansadas e fazem longas jornadas de trabalho

Na infância: meninas tem a infância abreviadas pelas responsabilidades que precisam assumir desde cedo

 

Pandemia e o fechamento das escolas

A interrupção das aulas por causa da pandemia do coronavírus produz efeitos que vão além dos prejuízos na aprendizagem. Por ser realizado no âmbito residencial, não há fiscalização sistemática do trabalho infantil e agora é possível que essas meninas estejam trabalhando mais do que no período pré-pandemia. 

“Com o fechamento das escolas, quantas coisas não estão sendo vistas ou não estão sendo denunciadas? Muitas vezes, são professores que escutam as crianças e buscam entender se há algo de errado. Hoje, as meninas não têm nenhum canal de apoio para que possam falar dessas violências”, comenta Elaine. 

A pandemia tem potencializado os problemas sociais do Brasil e empurrando ainda mais essas meninas para condições mais precárias de insegurança social. “O contexto atual aumenta a situação de desproteção dessas meninas, principalmente das negras. O trabalho infantil doméstico surge desse status de desproteção social. A família não consegue desenvolver o seu papel de garantir as necessidades das crianças e o Estado falha enquanto garantidor dos direitos básicos”, diz Viviana.

O aumento do abandono escolar é visto com uma consequência imediata da pandemia na educação. No entanto, no longo prazo esse cenário deve contribuir para o aumento da desigualdade social no país e lavar mais meninas para o trabalho infantil doméstico.

 “Se não prestarmos o atendimento, se as políticas públicas não chegarem a essas meninas e suas famílias, vamos continuar vendo aumento das desigualdades em todos os campos. Outras possibilidades de vida precisam ser oferecidas a essas crianças”, finaliza Elaine.

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