Exploração sexual ainda é tabu e invisível no Brasil

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27/02/2019|

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Pelas ruas do Jardim Ângela, no extremo sul de São Paulo, duas meninas foram abordadas pela equipe da assistência social no início desse ano. Com 12 e 13 anos, elas sinalizavam com o corpo, as roupas e a postura que eram vítimas de exploração sexual. Mas ao serem abordadas pela equipe de orientadores, disseram que estavam “apenas” trabalhando, vendendo balas que não carregavam.

O que nem todo mundo sabe é que a exploração sexual (conhecida por muitas pessoas pelo termo prostituição infantil) é, sim, considerada uma das piores formas de trabalho infantil. A classificação está de acordo com a Lista TIP, instituída pelo decreto Nº 6.481/2008, que regulamentou termos descritos na Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Crédito: Shutterstock/Jose As Reyes

Segundo Vanessa Helvécio, coordenadora do Centro de Referência Especializado de Assistência Social  (CREAS) M´Boi Mirim, os casos de exploração sexual são muito incomuns e quase nunca são assumidos, o que não significa que não existam.

“Precisamos proteger as crianças e os adolescentes, além do encaminhamento criminal, que não é feito por nós. O processo de exploração é bastante diferente dos casos de abuso sexual, mais comuns por aqui”, diz.

Os abusos geralmente são cometidos por pessoas conhecidas da vítima e não envolvem dinheiro. Já a exploração geralmente ocorre com pessoas de fora do círculo social. Além disso, Vanessa disse que a exploração ocorre em territórios mais centrais, como Pinheiros, Lapa e Moema, apesar das crianças e adolescentes explorados serem moradores da periferia.

Ainda de acordo com Vanessa, o baixo índice de denúncias também têm a ver com fatores culturais que naturalizam a violência. “Ouvimos muitas falas que culpabilizam as vítimas, principalmente quando são são meninas. O tabu também é grande, pois é um problema de polícia e não apenas de proteção. Se existe exploração é porque alguém explorou e esse alguém é um criminoso. Os melindres também passam por aí.”

Encaminhamento

O enfrentamento ao abuso e a exploração sexual de crianças e adolescentes é
realizado de forma articulada entre os órgãos que compõe o Sistema de
Garantia de Direitos.

Na cidade de São Paulo, a Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS) possui 24 serviços de Proteção Social à Criança e Adolescente Vítimas de Violência, Abuso e Exploração sexual (SPVV), que dispõem de mais de duas mil vagas.

De acordo com a SMADS, no ano de 2018, foram atendidas 43.096 pessoas, inclusive familiares e em alguns casos os agressores. A predominância do atendimento foi do sexo feminino, sendo 62% do total. Todos passam por atendimento individual e atividades que visam à proteção das vitimas e encerramento do ciclo de violência.

Segundo informações do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos,
no primeiro semestre de 2018, foram 1.182 denúncias de Abuso Sexual infantil por
meio do Disque 100.

O relatório Out of the Shadowspublicado em janeiro pela revista britânica The Economist, revelou como 40 países, que cobrem 70% da população global com menos de 19 anos, enfrentam o problema.

O Brasil apareceu como 11º melhor colocado, com 62,4 pontos, ficando abaixo da Austrália, Estados Unidos, Alemanha, Coreia do Sul, Itália, França e Japão. O país está acima da média do grupo, que é de 55,4 pontos.

O estudo destacou os marcos legais, assim como o envolvimento do setor privado, da sociedade civil e da mídia. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), por exemplo, é considerado uma das leis de proteção às crianças e aos adolescentes mais avançadas do mundo.

Em 2018, também entrou em vigor a Lei da Escuta Protegida (3792/15), da deputada Maria do Rosário (PT-RS) e de outros parlamentares. Ela exige integração entre os órgãos de atendimento de crianças e adolescentes, que deverão atuar conjuntamente.

A criança será ouvida preferencialmente uma vez só pela polícia e pelo Judiciário, por meio de profissionais que precisam ser capacitados para promoverem as entrevistas com as crianças vítimas de violência. Dessa maneira é evitada a revitimização.

Atendimento psicológico

Visando justamente promover a escuta protegida e evitar a revitimização, os psicólogos Rogério CarvalhoJamille Georges Reis Khouri desempenham um importante trabalho no SPVV Casa Verde.

“Atuamos com as famílias das vítimas e buscamos ressignificar a vida delas, pois é preciso seguir. Se a mãe revive o que aconteceu a todo momento, a superação se torna muito difícil”, diz Rogério, que também coordena o serviço.

Segundo Jamille, o trabalho lúdico, a partir de jogos, arte e brincadeiras, oportuniza um caminho, evitando a revitimização. “O processo de relatar a violência muitas vezes gera ainda mais traumas do que o ato gerou, ainda mais se a pessoa que está na escuta não é preparada”, comenta a psicóloga.

O trabalho com as famílias também visa combater a cultura que normaliza o abuso e a exploração sexual. “O problema é cultural, com ligação ao patriarcado e à cultura do estupro, a partir do entendimento de que o corpo da criança pode ser manipulado pelo adulto”, diz Rogério.

Ainda de acordo com o coordenador, é também essa cultura que leva as pessoas a não denunciarem quando ficam sabendo de algum caso de exploração sexual, levando à subnotificação.

Subnotificação

Apesar de todas as políticas, o Brasil enfrenta o grande desafio da subnotificação. As poucas denúncias acabam resultando em dados incompatíveis com a realidade. Para Luciana Temer, Diretora Presidente do Instituto Liberta, a exploração sexual ainda é um tema nebuloso e escondido.

“Quando falamos de exploração sexual, muitas pessoas não sabem do que estamos falando, pois este é o termo correto, embora seja recorrente falarem em prostituição infantil. O tema ainda é uma ignorância no Brasil, pois uma boa parte não o reconhece como um problema, porque não acha que é um crime. A outra parte sequer sabe que existe”, comenta Luciana.

A naturalização da prática tem a ver com a cultura de responsabilização da vítima pela violência sofrida. Frases como “ela não era mais virgem, ela gostou ou ela usou o dinheiro para ajudar a família” são mitos a respeito da exploração sexual. Para Luciana, a violência é um grave problema social, pois está relacionada à miséria.

“Muitos meninas e meninos explorados deixam a escola e muitas meninas engravidam. Os filhos nascem sem estrutura nenhuma e caem no colo do estado, perpetuando o ciclo da pobreza”, diz a diretora.

Possíveis caminhos

Ainda de acordo com Luciana, em primeiro lugar, é preciso fazer com que a exploração sexual se torne um problema no Brasil. “Sabemos que a política pública só nasce a partir da pressão social. O governo não vai atender demandas que não são clamadas pela sociedade. Por isso precisamos deixá-la desconfortável com a violação.”Possíveis caminhos

Além da comunicação, por meio de campanhas e do levantamento de dados, o Instituto Liberta, que atua diretamente na causa, acredita que a educação tem um papel fundamental na rede de proteção.

“O primeiro lugar que a situação aparece é na escola. Como é ela que vai endereçar a demanda, os educadores precisam saber que existe uma rede protetiva.  Há um registro de ocorrência escolares, conhecido como ROE, onde os professores anotam casos significativos. Esse é um canal muito importante que incentivamos em nossos projetos. Não é responsabilidade dos educadores resolverem a situação, mas falar com quem tem competência”

Muitas vezes as crianças e adolescentes vítimas de exploração sexual precisam de apoio de toda a comunidade até mesmo para reconhecerem que estão sendo violadas. Para Luciana, como eles estão inseridos no processo de violência, pode ser que nem entendam aquele ato como violento, pois é naturalizado.

“Nós encomendamos uma pesquisa que revelou que 64% das pessoas que sabem que exploração sexual é crime optam por não denunciar. É possível perceber que existe essa dimensão da falta de importância e da culpabilização da vítima. Mas sem os dados que retratem a realidade, fica ainda mais difícil de atuar na erradicação do problema. Por isso sempre convidamos todos a se envolverem. Disque 100 e denuncie”, convida.

Exploração sexual no Carnaval

Por meio da Comissão Municipal de Enfrentamento à Violência, Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes (CMESCA) e com apoio da Rede Peteca – Chega de Trabalho Infantil, a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS) lança a campanha “Escolha Ver: Exploração Sexual é Crime”, na quinta (28), durante o bloco de rua Grito de Carnaval.

A concentração será às 9h, no Vale do Anhangabaú, centro de São Paulo. Também em conjunto com a Comissão Municipal de Enfrentamento ao Trabalho Infantil (CMETI), a ação tem como foco o combate à exploração sexual no Carnaval, como uma das piores formas de trabalho infantil.

Depois de apresentações culturais de crianças e adolescentes atendidos pelos serviços da assistência, o grupo desfilará pelas ruas da região central e retornará ao local de partida, para o encerramento do evento. O samba enredo conta com a bateria dos grupos Unidos da Rua e Dom Bosco. DJ Valter Nu completa a festa. Haverá também panfletagem com os canais de denúncia para os casos de exploração sexual.

Desde 2005, o Grito visa mobilizar os setores do governo e da sociedade civil acerca da problemática da violência, abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes, previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

A expectativa de público é de mais de mil pessoas, entre crianças, adolescentes e adultos atendidos pela rede socioassistencial, funcionários da SMADS e representantes de organizações sociais.

Segundo o secretário da SMADS, José Castro, enfrentar o problema da exploração sexual infantil é fundamental para garantir o desenvolvimento humano integral deste público. “Assim, quando a administração pública se une à sociedade civil com esse intuito, o trabalho torna-se mais efetivo.

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