publicado dia 23/03/2018

Mobilização política e popular na construção do ECA: uma trajetória histórica

por Marco Antonio da Silva (Marquinhos)

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23/03/2018|

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Comemorar, lembrar e narrar os 27 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) pela perspectiva histórica, política e social é pensar a articulação em defesa da criança e do adolescente. É lembrar também que o movimento da infância fez parte da luta pela Democracia, Justiça e “Diretas Já”: momentos históricos que mobilizaram o país.

Às estratégias de atuação do movimento social da criança e do adolescente, somaram-se mobilizações pela democracia e combate à ditadura cívico-militar. Ações conjuntas fortaleceram as bandeiras gerais dos movimentos social e sindical brasileiro.

Manifestação pelos direitos da infância e da juventude nos anos 1980. Crédito: Oficina de Imagens/Reprodução

Manifestação pelos direitos da infância e da juventude nos anos 1980. Crédito: Oficina de Imagens/Reprodução

Com o Golpe de 1964, houve mudanças na política e nas instituições responsáveis pelas crianças e adolescentes das camadas populares. Na década de 1970, o regime ampliou as contradições que foram respondidas pelos novos movimentos sociais e os históricos. Na década de 1980, a articulação e o fortalecimento do movimento social pela infância e pela adolescência foram determinantes para a alteração do panorama legal e a inclusão do novo paradigma e concepção de crianças e adolescentes como “sujeitos de direitos”.

Como resultado deste processo histórico e social, foi concebido, aprovado e nasceu o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990).

(Confira, acima, o canal “Entenda o ECA”, feito pela Rede Peteca – Chega de Trabalho infantil com o especialista Ariel de Castro Alves)

Criminalização da infância

Após o golpe cívico-militar de 1964, o governo de plantão substituiu o Serviço de Assistência a Menores (SAM) pela Fundação Nacional de Bem Estar do Menor (FUNABEM).

Para coordenar, executar, desenvolver e realizar todas as políticas e ações dirigidas aos “menores” no Brasil foram criadas: a Política Nacional do Bem Estar do Menor (PNBEM) e a Fundação Estadual do Bem Estar do Menor (FEBEM). Com isso, a infância passa a ser enxergada como um problema de segurança nacional.

O debate sobre a infância se acirrou nos espaços públicos e privados. O Estado não conseguia oferecer soluções adequadas para crianças e adolescentes das camadas populares, em especial, para os meninos e meninas de rua, que chocavam e incomodavam a sociedade concentrando-se, cada vez mais, nos centros urbanos.

Imagem mostra garoto com a cabeça raspadas e de costas

Crédito: Marcos Santos/ USP Imagens

As organizações e autoridades governamentais foram questionadas pela sociedade e por órgãos de controle nacional e internacional sobre a eficácia destas políticas para crianças e adolescentes.

Debate acirrado

A reação das forças autoritárias, segregacionistas e conservadoras tornava evidente a violência praticada pela PNBEM e pela segurança pública contra as crianças. O quadro da realidade cotidiana ficava grave e insustentável.

Assim, em 1975, a Câmara dos Deputados criou a Comissão Parlamentar de Inquérito do Menor (CPI do Menor) para avaliar a situação da criança desassistida no Brasil, ou seja, os casos de abandono e violência institucional nos reformatórios, como nas FEBEMs.

O principal impacto da CPI foi o aumento da pressão para mudanças na legislação e o desenvolvimento de novos instrumentos para solucionar a “carência” das crianças e adolescentes das camadas populares, assim como a violência contra elas. Este processo contribuiu para a promulgação do 2º Código de Menores, em 1979, documento base para a concepção do “menor em situação irregular”.

As resistências

A ONU elegeu 1979 o Ano Internacional da Criança, com objetivo de sensibilizar o mundo para os problemas que afetavam a infância.

Neste período, também surgiram experiências pastorais e populares importantes dentro da Igreja Católica, em defesa das crianças: o Movimento República do Pequeno Vendedor, na década de 1970; a Pastoral do Menor, em 1977, um dos principais movimentos e o Movimento de Defesa do Menor em São Paulo, constituído por políticos e profissionais liberais (advogados, jornalistas, assistentes sociais, psicólogos), visando à denúncia e ao questionamento da violência praticada pela FEBEM e pela polícia de São Paulo.

Pesquisa e documentação

Alguns pesquisadores universitários começaram a estudar as populações em risco de vida como as crianças e adolescentes em situação de rua e a delinquência juvenil.

Destacaram-se as pesquisas

“A criança, o adolescente e a cidade”, realizada pelo CEBRAP-São Paulo, em 1974 e “Menino de rua: expectativas e valores de menores marginalizados em São Paulo, realizada por Rosa Maria Fischer, em 1979, entre outros.

O Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) ampliou sua atuação no Brasil, focando e fortalecendo os grupos que começaram a problematizar a situação dos “Menores” e a própria PNBEM.


O governo militar, na segunda metade da década de 1970, com sua ideologia e políticas autoritárias e conservadoras, já demonstrava instabilidade diante da nova dinâmica política, econômica e social no país. A crise não tardaria.

No chamado “milagre econômico” de 1973, o regime apresentou reformas que combinavam liberdades controladas com decisões centralizadas.

Este projeto precisava do apoio da classe política para suspender a autonomia dos partidos e de políticos oposicionistas, a fim de fortalecer um comando único com a pretensão ainda de alcançar outros seguimentos da sociedade.

Ao contrário do planejado, apareceram as maiores resistências. Os movimentos sociais e sindicais estavam em ascensão e unificaram suas bandeiras de lutas: liberdades democráticas, cidadania e justiça.

O movimento sindical saiu na frente, ocupando o cenário político com as greves no ABC paulista, ampliando e radicalizando a luta por democracia e abertura política.

A democratização

Já no fim da década de 1970, em 1978, é revogado o AI-5. A abertura política iniciou-se propriamente, em 1979, com o fim da censura prévia e o fim do bipartidarismo (ARENA e MDB), abrindo caminho para a legalização dos partidos políticos que atuavam na clandestinidade.

No início dos anos 1980, começou a reorganização e institucionalização das organizações sindicais (CONCLAT, CUT, CGT), a ampliação das associações de classe (médicos, engenheiros, funcionários públicos…), os movimentos sociais que, rearticulados, saíram da clandestinidade para lutar por direitos básicos, com o apoio da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), da Organização dos Advogados do Brasil (OAB) e de setores progressistas religiosos.

Frase de Nelson Mandela ilustra cartaz em manifestação. Crédito: Tânia Rego/Agência Brasil

Frase de Nelson Mandela ilustra cartaz em manifestação. Crédito: Tânia Rego/Agência Brasil

Se na década de 1970, os militantes de movimentos sindicais e sociais sofreram repressões, mortes, prisões, perseguições e os trabalhadores e as populações vulneráveis viveram a deterioração das condições de vida, no final desta década, em oposição a toda esta repressão, ressurgiram e emergiram os chamados novos movimentos sociais e sindicais, com os movimentos históricos.

As mobilizações em massa, a formação da base, tiveram as ruas como palco principal para fazer política. Tendo este contexto sociopolítico de fundo, o movimento da infância fazem duras críticas à Doutrina da Situação Irregular, à PNBEM e às instituições desta política, apontando principalmente para a violência contra crianças e adolescentes de maneira concreta, ligando e identificando nos problemas estruturais e socioeconômicos, as raízes da situação de abandono da infância e da adolescência brasileira.

Olhar para os meninos e meninas

No início dos anos 1980, houve uma cooperação técnica e financeira entre a SAS (Secretaria de Assistência Social) do Ministério da Previdência e Assistência Social, o UNICEF e a FUNABEM.

Os técnicos destas instituições iniciaram o projeto Alternativas de Atendimento aos Meninos de Rua (destaque para a ausência do enfoque de gênero), que visava localizar e identificar as organizações e programas não-institucionalizantes e comunitários, baseados na educação social de rua, que eram iniciativas divergentes da política em vigor.

O método promovia o contato, as trocas de experiências e a aprendizagem mútua, por meio de oficinas, reuniões, encontros, seminários, estágios, produção de cartilhas e de vídeos, estimulando a produção e o compartilhamento de conhecimentos.

A base das ações eram o diálogo e o semitágio (fusão entre as palavras seminário e estágio). Os registros e a sistematização promoviam a divulgação de boas práticas.

Este processo gerava aproximação e confiança entre as instituições, os trabalhadores e os militantes, resultando num contraste que criticava o antigo modelo assistencialista-correcional-repressivo da PNBEM.

Este trabalho foi a pedra fundamental para a construção da atual concepção de infância, dos princípios e da visão sistêmica presente no ECA. Entre as experiências deste tipo, estão:

Toda a efervescência da década passada resultou numa importante articulação e na criação do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua (MNMMR), em 1985 que fortaleceu o protagonismo infantojuvenil.

Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, nos anos 1980. Cre?dito Reynaldo Stavale/Reprodução do site Plenarinho

Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, nos anos 1980. Cre?dito Reynaldo Stavale/Reprodução do site Plenarinho

A criança e o adolescente deixaram de ser vistos como uma coleção de carências e passam a ser percebidos como sujeitos da própria história e da história de seu povo. As perguntas mudaram: “Quem ele é?”, “O que ele sabe?”, “O que ele faz?” e “Do que ele é capaz?”. O movimento tem posição contrária à Doutrina da Situação Irregular, vigente no país.

Em junho de 1985 se constitui, a Frente Nacional de Defesa dos Direitos da Criança, formada por agentes municipalistas com perfil progressista. Neste ano realiza o Encontro Nacional “Paulo Freire e os Educadores Sociais” com produção de cartilha trazendo reflexões sobre os meninos e meninas de rua, a educação social os educadores sociais de rua.

Sociedade mobilizada

Tais ações tiveram grande impacto nacional, mostrando a força e o vigor do movimento social pelos direitos da criança e adolescente no país que continuou com outras mobilizações e articulações, fazendo incidência política na sociedade e no Congresso Nacional, através da Criança Constituinte (1986) e do Criança: Prioridade Nacional (1987).

Milhares de crianças e adolescentes realizaram um abraço no Congresso Nacional (Ciranda da Criança), associadas a 1,4 milhão de assinaturas de outras crianças e adolescentes sensibilizaram a opinião pública e os constituintes sobre a realidade da infância brasileira.

Duas emendas de iniciativa popular foram apoiadas por mais de duzentas mil assinaturas de eleitores e em torno de 600 organizações foram exigir direitos, conseguindo a aprovação.

A estratégia bem-sucedida de coleta de assinaturas e lobby no Congresso Federal para inclusão de diretos na Constituição intensificou a articulação e a mobilização dos seguimentos organizados de defesa dos meninos e meninas que, em 1988, criaram o Fórum Nacional de Entidades Não Governamentais de Defesa dos Direitos da Criança e Adolescente (FNDCA).

Com papel protagonista nas discussões e na elaboração da nova Constituição, essa articulação foi fundamental para a inclusão dos artigos 227 e 228 na Carta Magna (1988), com 435 votos a favor e apenas 8 votos contrários. A constituição aprovada em 5 de outubro de 1988, trouxe o artigo 227:

“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”;

e o artigo 228:

“São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial”.

Crianças em passeata de escola carregam cartaz defendendo a paz no mundo

Crianças em passeata de escola carregam cartaz defendendo a paz no mundo. Crédito: EBC.

Após a aprovação da Constituição Federal, o segundo objetivo da militância era regulamentar os dois artigos, por meio do Fórum Nacional DCA e da curadoria do Menor de São Paulo.

Foi elaborado um Projeto de Lei (PL): “Normas Gerais de Proteção a Infância e a Juventude” por um grupo de redatores com representante de diversos setores: movimentos sociais (FNDCA), juristas (juiz, promotor público, advogado), UNICEF e outros especialistas.

Este PL caminhou nas duas casas do Congresso Nacional.

Por meio da Frente Parlamentar da Infância e o II Encontro Nacional de Meninos e Meninas de Rua, houve uma votação popular para o ECA, pelas próprias crianças e adolescentes, na Câmara dos Deputados. Alguns setores e entidades estavam envolvidos na luta pelos direitos da criança e adolescente, como a Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança (1990), no campo empresarial e o movimento sindical de trabalhadores, com a participação de profissionais vinculados às políticas sociais principalmente.

Fim do primeiro ato

As articulações em torno do ECA também tinham como alicerce a Convenção sobre os Direitos da Criança, aprovada em 1989, na Organização Nações Unidas (ONU). O Brasil assinou a Convenção em 2 de setembro de 1990.

Em 13 de julho de 1990, o Congresso Nacional aprovou o Estatuto da Criança e Adolescente, marco legal construído pelos movimentos sociais, religiosos e jurídicos que deram forma às reivindicações de muitas instituições, militantes, educadores, famílias, crianças e adolescentes.

A nova Lei trouxe uma mudança radical de paradigma: a partir de então, as crianças e os adolescentes são considerados sujeitos em desenvolvimento, com prioridade no direito à proteção e à cidadania.

O ECA entrou em vigor em 12 de outubro de 1990. Depois disso, houve diversas conquistas, avanços e desafios, que levarão mais páginas para tantas outras narrativas.

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