Campanha mobiliza sociedade a romper o silêncio da violência sexual contra crianças e adolescentes

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17/05/2022|

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Agora você Sabe é uma campanha organizada pelo Instituto Liberta, visando romper o silêncio da violência sexual contra crianças e adolescentes. Ao longo de dois meses, a organização mobilizou pessoas a gravarem vídeos dizendo a frase: “Violência sexual contra crianças é uma realidade. Eu fui vítima e agora você sabe”. O resultado foi uma grande passeata digital, divulgada em 18 de maio, Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes.

Falamos com Luciana Temer, diretora-presidente do Instituto Liberta, a respeito da iniciativa. Segundo ela, a campanha tem dois objetivos: tirar a violência sexual infantil da invisibilidade e incentivar que as pessoas rompam com o próprio silêncio sobre violências que viveram na infância ou na adolescência e também batalhar por políticas públicas de enfrentamento à violência sexual.

A diretora-presidente explicou a diferença, ainda desconhecida por parte da sociedade, entre abuso e exploração sexual. “O que a sociedade chama de abuso tecnicamente se chama estupro de vulnerável. No Código Penal, qualquer adulto que tenha relação sexual (e não precisa ter penetração. É qualquer ato libidinoso), com menino ou menina de até 14 anos, comete estupro, porque é considerado um vício de consentimento, mesmo que a criança ou o adolescente em tese tenham consentido. Entendemos como sociedade que não há consentimento possível quando o adolescente tem menos de 14 anos e a outra pessoa é um adulto”, diz.

“A exploração sexual é quando um adulto paga para ter qualquer relação sexual com adolescente de 14 a 18 anos. No caso de adolescentes com menos de 14 anos, incide no crime de estupro, que é mais gravemente punido que a exploração sexual. Se uma criança de 9 anos teve uma relação com um adulto, mesmo que ela tenha recebido, entra na tipificação de estupro. E receber não é somente dinheiro. É qualquer troca mercantil. Pode ser um saco de bolacha. Pode acontecer ainda de haver um agenciador. Neste caso, quem teve a relação responde por estupro e quem agenciou responde por exploração sexual. Dos 14 aos 18 anos, o adolescente pode se relacionar com o adulto, desde que não seja em troca de algo”, explica Luciana.

Segundo Luciana, a exploração sexual pode ocorrer em locais como hotéis, postos de gasolina, balsas e bares. Nesses casos, de acordo com o Código Penal, o dono do estabelecimento também responde pelo crime. Em espaços privados de uso coletivo, como terminal de carga ou rodoviário, a responsabilização criminal é mais difícil, pois não há um dono em si; mas é esperado que as empresas não se omitam e realizem campanhas, coibindo esses crimes.

Conhecida como prostituição infantil, a exploração sexual é considerada uma das piores formas de trabalho infantil, pela Organização Internacional do Trabalho (OIT). O termo ‘prostituição” é equivocado, pois não se trata de uma escolha. A menina, em condição peculiar de desenvolvimento, não pode tomar essa decisão de forma madura e é uma vítima.

Confira outros trechos da entrevista:

Qual é o principal objetivo da campanha?

Luciana Temer: O Agora Você Sabe tem na verdade dois grandes objetivos. O primeiro é tirar a violência sexual infantil da invisibilidade e a gente quer fazer isso de forma que as pessoas rompam com o próprio silêncio sobre violências que viveram na infância ou na adolescência.

Queremos fazer um grande barulho com a primeira passeata virtual. E para fazer barulho, a gente precisa ter muita gente. A gente está convidando pessoas adultas a admitirem q foram vítimas de violência, falando frases padrões, como “violência sexual contra crianças e adolescentes é uma realidade. Eu fui vítima e agora você sabe”.

Quando a gente pede para as pessoas romperem o silêncio, não é o silêncio sobre a própria história, porque este levante não é sobre a história de cada um, mas sobre a força do coletivo. O coletivo é que rompe o silêncio e sai desse papel de constrangimento em relação à violência sexual.

O segundo objetivo é batalhar por políticas públicas de enfrentamento à violência sexual, porque a hora que a gente conseguir tirar da invisibilidade e fazer barulho, vamos chegar aos candidatos e candidatas a presidente e governadores deste país com o Agora Você Sabe, perguntando qual é o plano concreto de enfrentamento para esta violência.

Qual é o papel da educação no enfrentamento à violência sexual?

Luciana Temer: Nós, do Liberta, acreditamos que a melhor política é a educação, na lógica da prevenção. Falar sobre violências e sobre relações sexuais saudáveis com crianças e adolescentes, cada um ao seu tempo, na idade e da maneira adequadas, é a forma mais efetiva de enfrentamento à violência.

Por isso a passeata tem o objetivo claro de fazer barulho e tirar da invisibilidade, criando um grande desconforto social e quebrando o estereótipo de que a violência está somente nas periferias. A gente sabe que política pública se constrói a partir de desconforto e pressão social. A gente precisa tornar a violência sexual contra crianças e adolescentes um problema no Brasil.

Mais de quatro meninas com menos de 13 anos são estupradas por hora e isso não está na pauta do Brasil como um problema. A hora que for um problema, aí você tem pressão por políticas públicas e pode apresentar os projetos. Lógico que a educação não é a única forma de enfrentamento. Há outras formas necessárias, como fortalecimento da rede de proteção e a implementação da Lei da chamada Escuta Protegida, mas a gente acredita na prevenção e isso ocorre por meio da educação nas escolas públicas e privadas.

Em relação aos professores, é importante sensibilizar e mostrar qual é o papel da escola na rede de proteção. A escola tem um papel muito específico e próprio, que é onde essa violência pode ser mais facilmente enxergada. A escola é o único lugar onde as crianças e os adolescentes têm uma frequência cotidiana, no qual há contato com adultos responsáveis fora do círculo familiar.

Por que é tão importante que seja fora do círculo familiar? Pois 67% das violências sexuais acontecem dentro das residências e 86% são praticadas por pessoas próximas, sendo uma boa parte em relações intrafamiliares. É preciso oferecer para a criança e para o adolescente um espaço fora do núcleo familiar. A gente acredita que esse espaço é a escola, onde a violência pode chegar e ser percebida.

O papel do professor e da escola é endereçar para os órgãos corretos, como Conselho Tutelar e Delegacia de Polícia. É preciso ter toda uma rede de proteção azeitada no território para que o professor e a escola também não fiquem sozinhos. O papel é estar atendo para receber e perceber, mas defendemos que seja mais do que isso, que seja um papel de prevenção e isso vai se dar quando for um assunto que esteja permeando toda a vida escolar do estudante.

Por que a maior parte das violências é cometida por pessoas próximas da vítima?

Luciana Temer: Eu acredito que, na verdade, quando falamos dessas violências sexuais, geralmente falamos de relações de poder. O pico de violência sexual contra meninas é dos 10 aos 13 anos de idade. Já o pico da violência contra meninos é dos 4 aos 8 anos. Essa diferença revela dois aspectos do nosso país. Um é a cultura de que a criança é propriedade do adulto e que pode ser feito com ela o que se bem entender, independentemente se é menina ou menino. Depois há a revelação de uma sociedade machista. Os meninos vão crescendo, se empoderando um pouco e resistindo melhor a esta violência, enquanto as meninas vão ficando cada vez mais sujeitas.

Quando a gente fala de criança e adolescente, a gente fala de relações de poder. São relações de poder intrafamiliar, relações de professores com alunas, religiosos com seus seguidores – padres com crianças, pastores, rabinos… A violência sexual está muito ligada à relação de poder. Por isso, é tão comum que essa violência aconteça no seio da família.

Houve o aumento da violência na pandemia?

Luciana Temer: Na verdade, houve uma queda na denúncia de estupro de vulnerável (abuso) na pandemia, o que é compreensível, porque é uma violência muito intrafamiliar e as crianças não iam à escola.

O relatório Análise de Ocorrências de Estupro de Vulnerável do estado de São Paulo – desenvolvido pelo Instituto Sou da Paz, pelo Ministério Público de São Paulo e pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) – apresentou redução significativa de -15,7% no primeiro semestre de 2020, sobretudo nos meses de abril (-36,5%) e maio (-39,3%), quando a quarentena no estado era ainda mais restritiva, mas isso não significa que o crime diminuiu.

Quando falamos da exploração sexual, não temos dados, mas te afirmo sem nenhuma dúvida que a exploração deve ter aumentado muito, pois está muito conectada à vulnerabilidade social. O crime de estupro de vulnerável, o abuso, não tem classe social. Acontece em todas as classes sociais. Quando você fala da exploração sexual, você tem o recorte de vítimas em vulnerabilidade social e exploradores de todas as classes sociais. Quando você tem o aumento da vulnerabilidade, tem o aumento da exploração sexual.

E nós não temos dados sobre a exploração sexual nem fora da pandemia. O Anuário Brasileiro de Segurança, desde 2019, traz os dados de estupro de vulnerável. Foi o primeiro ano em que apareceu e pudemos enxergar que a maioria dos estupros eram contra meninas com menos de 13 anos de idade, mas a exploração sexual não está no Anuário Brasileiro de Segurança, pois não temos um número significativo de denúncias a ponto de constar.

A exploração sexual tem uma invisibilidade muito diferente. No abuso você tem realmente um silenciamento, porque a maioria das situações são intrafamiliares. No caso da exploração, tem um preconceito da sociedade que vê aquela menina e pensa que ela está lá porque ela quer e nós não temos nada a ver com isso. Entra a lógica de que meninas e mulheres são culpabilizadas pela violência que sofrem.

Em relação à exploração sexual, nós temos somente os dados levantados pela Childhood, em parceria com a Polícia Rodoviária Federal, que estimam que a exploração sexual afete 500 mil crianças e adolescentes por ano. O número nos coloca em segundo lugar entre os países com mais casos, atrás apenas da Tailândia, no Sudeste Asiático.

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